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D. Manuel II junto às sepulturas

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D. Manuel II junto às sepulturas Empty D. Manuel II junto às sepulturas

Mensagem por JornalExtra-Online Qui 12 Jun 2008 - 14:53




Após a dotação real surge a figura de Bernardino Machado,
e os iluminados surgindo também com o chefe
republicano a propaganda a favor de D. Miguel de Bragança.
Vem a caminho a aliança politica contra o Rei D. Carlos .
A populaça grita no enterro dos regicidas
e ouve-se nas ruas os últimos insultos ao rei morto.



As funções do novo Rei tinham alguma coisa de horrível.

Era como um homem metido numa muralha de ferro; cada vez que tentasse transpô-la, um cutelo, movido pelos seus passos, desceria sobre a sua cabeça.

Esses férreos paredões eram a Constituição; o cutelo as ameaças e a recordação da tragédia real.

Entendia-o tanto assim que alardeou desde logo obediência cabal ao seu dever, respeito religioso à velha lei do Reino, jamais cumprida.

Numa carta enviada ao chefe do seu governo declarava não querer utilizar-se de dotação sem o parlamento a fixar.

Jamais foi tão doloroso o cargo dum Rei Constitucional.

Entrava a governar condenando a obra do reinado anterior. O seu natural desejo, bem humano e bem de alma, devia ser clamar contra os criminosos, vingar por suas mãos, nos cúmplices de toda a espécie, aquele assalto a seu pai e a seu irmão. O que um Rei absoluto fizera a um grande senhor do Reino era-lhe defeso a Ele, que quase devia dar razão a um punhado palrador de bacharéis, a um sinistro núcleo de burgueses.

Enorme era o sacrifício da natureza à lei; o da represália ao oficio de governar.

Iniciava-se o reinado como uma página horripilante dessas crónicas feudais da Austrália, em que guerreiros de manápula rija vergam débeis filhos de Clodomiro.

A época barbara passara havia muito e agora eram políticos de ar honesto que continuavam as torturas do velho tempo.

O espectáculo começava a ter alguma coisa de comovente, depois do horrível gerado nos bastidores.

Os primeiros passos do Rei D. Manuel II, jovem, inexperiente, eram débeis; tacteava e ia com os olhos nublados pela visão sangrenta que lhe diziam nascida de erros e ser, na frase dum calmo republicano, a obra de iluminados.

No paço soara, através da imprensa, a opinião, assim expressa, do conselheiro Bernardino Machado, antigo ministro da Monarquia, colega do ditador no gabinete celebre onde se forjara a lei contra os anarquistas, par do Reino eleito e que, com o seu grande ar delicado, se lisonjeava da familiaridade de D. Carlos, mesmo depois da sua filiação republicana.

Tinha então cinquenta e sete anos bem conservados de homem opulento, senhor de fortuna grossa amealhada pelos seus no Brasil, onde nascera.

Seu pai ganhara bons capitães na lida comercial, casara com a filha doutro capitalista abastado e, seguindo a tradição, recebera uma comenda e viera erguer um palacete à beira da sua terra de Famalicão.



D. Manuel II junto às sepulturas Famali10



Escolheu Joanne, na freguesia do Salvador, nas encostas do Corvean, onde há vetustas ruínas e por onde andaram outrora templários.

Atrás da comenda veio o baronato, por carta régia, em 1870, e o opulento comerciante retirado montava, sob a sua coroa circular, as armas dos Machados, mercê do apelido.

Assim a proeza de D. Mendo Moniz, na aurora do Reino, ao romper a machado as portas bem defendidas de Santarém, viera a esta enxertia.

O nobre homem de Gondarem, cujo solar era perto de Famalicão, teve deste modo perpetuado o seu escudo numa época em que os legítimos descendentes dos Moniz viam a derrocar-se as pedras das suas quintas.

E um trecho vulgar de novela camiliana topada na vida real.

Também o comendador Bento José Pereira Montalegre, do Eusébio Macário, tivera mais pomposo brasão, embora menos antigo, como o grande escritor narra:

“O Molarinho não achou no índice alfabético dos apelidos nobres o Montalegre. Esteve para criá-lo, inventá-lo, um monte batido do largo sol, matizado de boninas, com recamos de flores amarelas de giestas e florescências roxas da urze, um monte-risonho: “Montalegre”.

Mas receou exceder a missão da arte na cooperação dos fidalgos. Como ele também era Pereira, gravou o baixo relevo do brasão do condestável, dos Braganças: em campo vermelho uma cruz de prata floreteada e vazia de campo; timbre uma cruz vermelha também floreteada e maciça entre asas de ouro abertas. Eram as armas d’El-Rei D. Afonso, o Casto, e de seu sobrinho Forjaz Vermuí, avoengo de D. Nuno Álvares Pereira e de Bento José, talvez”.

O conselheiro nunca tivera uma dificuldade material; correra-lhe sempre serena a vida e isso reflectia-se no seu sorriso satisfeito, na vaidade de si próprio, na ânsia de ir até ao alto das ambições, mas entre homenagens, sem tarefas pesadas, sem estudos novos, de forma que pudesse sorrir sempre.

Quando se ligara aos republicanos achara essa facilidade. A popularidade viera, embora todos pensassem que ele não poderia medrar naquele ortigal bravo. Não seduziria essas almas revoltadas amigas do berro, da rudeza, da violência. E pensava-se que seria como um feto arremessado para uma jaula. Mas não se conhecia bem essa massa popular, logo lisonjeada com aquele conselheiro que a saudava e vinha pedir o seu lugar no montão.

Habituara-se à sua pessoa; fora como uma gota de água corrosiva pingando dia e noite sobre um liós. Conquistara o seu lugar e a popularidade chegara, como a dos outros, apesar das suas maneiras doces e dos seus sorrisos, já estereotipados pelo hábito, entre a barbicha alva.

Os seus retratos avultavam por toda a parte, desde os rótulos das garrafas às capas elegantes das revistas, desde os quadros, ao lado dum Cristo iluminado com a sua auréola, até aos postais, onde surgia de barrete.

Coisa alguma o irritava; não sentia nem o grotesco, nem o vulgar; achava que, prodigalizando-se assim, fazia um perene reclamo à Ideia.
Tinha sempre a sua fama de bom homem; e a sua gentileza, a sua forma de se apresentar, as suas carícias aos bandos de crianças, de que as associações populares se tinham apossado, tornavam-no como um apóstolo desinteressado.

Por isso causou surpresa ao dizer como aquele crime era desculpável.

Sentiu-o o Paço, mas mais profundamente o sentiu o povo.

Vendo-o como uma alma de eleição, as suas palavras caíam a fazer prosélitos, mesmo entre os bondosos pouco reflexivos.

“A que o partido republicano não podia obstar – dissera ele – era que aparecessem, dentro da sociedade portuguesa, alguns iluminados, que, assim como o presidente do conselho se tinha julgado com missão de oprimir, por meio de todas as violências, se julgassem eles também com a missão oposta, de libertar, fosse como fosse, a sua pátria de toda a tirania”.

Dizia-o sorrindo docemente ao jornalista, ouvindo a correria dos filhos pequenos nas grandes casas da rua de S. Bernardo, vendo as borboletas voando nos alegretes. Dia e noite o povo procurava-o, enchia-lhe o gabinete; vinha com mais esperanças nos olhos, onde fervilhava o ódio, e a atmosfera aquecia de terror, a lama de todos os bairros empastava-se nos tapetes, trazida pelas botas dos crentes, durante aquele Inverno.

Aquilo repetia-se como se tivesse já uma missão oficial. Ao noticiar-se que mandara um telegrama de pêsames à Rainha, apressadamente repelira a nova; negava-a diante dos correligionários suspeitosos, dizia-o bem alto, querendo fortalecer a voz, enfurecer o rosto, mas sendo sempre mavioso e sempre risonho.


“Que tinha muita pena, mas fora a obra de iluminados”.


Não podiam já causar pasmo as palavras do homem afável.

Quando o deixavam escancarava as janelas, para sair o fumo do tabaco, o cheiro da turba que se aglomerara.

Era o seu único sacrifício.

Mas guardava integra a popularidade.

Sabia bem que era necessário falar assim.

A sua fama de bondade ele a reconquistaria com o sorriso; atirar a piedade à alma do povo seria como se deixasse cair uma tocha num braseiro; seria ficar perdido, escorraçado, a morrer de saudades pelas homenagens.

Por isso se quedava sorrindo, ante um lago de sangue, no seu lar, nas ruas, nas montras das lojas, como uma imagem, entre os retratos de dois regicidas.
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